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O Mal Encontra a Verdade – Parte 2 – Jean Felipe Felsky

Apresento aqui a segunda parte do conto ” O Mal Encontra a Verdade” de Jean Felipe Felsky . Jean é um autor criativo que tive a oportunidade de conhecer. Ele  nasceu em Curitiba, PR no dia 22 de Janeiro de 1985. Formou-se em ciência da computação pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná e apesar da formação muito técnica sempre se interessou pela literatura, em especial a de terror. Desde o tempo do colégio escreve pequenos contos e poesias como forma de expressão. Participa de grupos de literatura como a Tinta Rubra e a Sociedade dos Leitores Tortos.
Contato com o autor : jean.felsky@gmail.com

Aqui a primeira parte:

O MAL BUSCA A VERDADE

Boa Leitura!

O Mal Encontra a Verdade
Jean Felipe Felsky
— Você não se lembra? Você não se lembra?! Meu rosto, meus cabelos, meu corpo e minha voz não mudaram nada e mesmo assim você não se lembra? Que decepção. Mas, não se preocupe, vou fazer você lembrar! Sim, você vai lembrar de tudo! Faz 10 anos, exatamente hoje! Você foi ao meu consultório, fraco, patético, do mesmo jeito que te vejo agora.
— Lu… Luana? — o vampiro ensanguentado, encolhido no canto do quarto murmurou o nome daquela que seria a última pessoa que ele esperava reencontrar. A mulher de cabelos loiros e olhar penetrante sorriu.
– Ah… Que bom que está lembrando, sim, que bom! Por que eu não me esqueci. Cada um desses dias eu lembrei e esperei por este momento.
– M… mas… co… como? – Ele se esforçava para falar e tossiu sangue. Seu corpo inteiro doía e seu orgulho ferido não o deixava entender como aquela mulher de aparência frágil podia ser tão rápida e forte a ponto de lhe castigar tanto o corpo. E se fosse quem ele suspeitava e ela alegava, deveria estar morta! Ele mesmo a matara, tentando a transformar em vampiro. Ele só queria respostas e saiu de seu consultório com mais dúvidas e com um corpo que insistia em não renascer, mesmo que como vampiro.
– Como?? Ora, é simples! Você me matou, me alimentou do seu sangue e aqui estou. Não viva e não morta, exatamente como você! Mas, você é um completo tolo. Se o processo levou um dia inteiro para você por que não poderia levar mais para mim? Eu levei uma semana para voltar e você não estava lá quando despertei. Uma semana, sete dias, sem céu nem inferno. Apenas um vazio, um nada. Nenhum som e nenhuma imagem, mas a dor estava lá. A dor de querer morrer e não conseguir e a tristeza de querer viver e tampouco voltar. Somado a tudo isso, o gosto adocicado e enjoativo do seu maldito sangue na minha boca! Era só isso o que eu sentia, você consegue imaginar, não consegue? O desespero e a agonia eram minha única companhia enquanto gritos silenciosos eram minha única forma de expressão. Todas as células do meu corpo ardiam num calor intenso como se fossem uma a uma queimadas pelo próprio fogo do inferno à medida que iam se transformando no que sou agora. Este tormento durou por todo o tempo em que estive naquele torpor irreal. Enfim, quando estava pronta, acordei e finalmente compreendi a fome que você alegava enfrentar. Foi a primeira vez que me alimentei, foi de um mendingo que andava cambaleante pelo beco em que você me deixou. Seu sangue impregnado do gosto amargo da cachaça barata que ele havia bebido me trouxe à consciência novamente. Só depois de saciada, aquele desejo incontrolável me abandonou e eu tive poder sobre minhas ações novamente. Quando vi aquele corpo imóvel à minha frente eu entendi o seu sofrimento e questionamento. A ironia de tudo isso é que você realmente me deu os meios para te entender, para te ajudar. Mas, não creio que você aceitaria meus conselhos. Eu te observei esses anos e você continua o mesmo fraco e chorão de sempre. Você continua se alimentando de páreas, sustentando um falso moralismo que nem mesmo você entende! Desse modo, você se priva das melhores oportunidades, das melhores safras que a sociedade tem para nos oferecer. E o pior, agindo assim você não evolui. Você ainda acha que seu truque barato de deixar um quarto mais escuro é o máximo, mas mal sabe que, se eu assim desejar, posso criar sombras tão densas que te sufocariam, esmagariam e matariam agora mesmo! Você não sabe como usar essas sombras para te esconder, te fazendo invisível a olhos mortais. Você não sabe nada! Luana parou e encarou profundamente o vampiro a sua frente. Ele apresentava espasmos involuntários devido ao grande número de ferimentos e havia perdido tanto sangue que não conseguia se recuperar. Lentamente, deu-lhe as costas e se pôs a pensar sobre aquela noite. Ao acordar, sabia que teria de enfrentar seu criador, não podia esperar mais. Ela o rastreara e seguira por tanto tempo, de longe ela aprendera seus truques e quando já não havia mais o que aprender ela o deixou, mas sem nunca esquecê-lo. Sozinha, aprendera novos truques, a utilizar seu sangue como uma fonte extra de poder, a controlar sua fome, a matar e a não matar e como escolher. Anos se passaram até que ela o procurou novamente. Ele continuava exatamente o mesmo, não só na aparência, afinal vampiros não envelhecem, mas na essência, nas atitudes e convicções. Enfim, ele ainda chorava lágrimas de sangue noite após noite. Há dez dias ela o reencontrara e de longe apenas observava. Ele se isolara, desesperado tentava compreender sozinho o que acontecera com ele. Temia, mais do que tudo, passar pelo mesmo que havia passado com a única pessoa que tentara ajudá-lo. Não deixava ninguém se aproximar, na sua solidão procurava um sentido para aquilo tudo. Mas, agora ele não estava só, a única pessoa ciente da sua existência como vampiro estava a sua frente. E depois de alguns instantes que lhe pareceram uma eternidade, ela se virou para ele novamente.
– Olhe só para você! Como é possível você ainda não ter compreendido? A explicação  sempre esteve escancarada na sua frente. Você se depara com ela todo santo dia.
– Eu só me deparo com a morte, dia após dia, você ainda não entendeu isso?! – juntando
o pouco de força que lhe resta, o vampiro moribundo ainda tentou argumentar.
– Mas, é isso!! Você que não entende! Nós somos causadores da morte. Essa é a nossa  natureza, qualquer força que tenha nos colocado no mundo, nos fez assim. Predadores! Aceite sua natureza. Você é o caçador e não há mal nisso!
– Não! – o grito sai de sua garganta junto com mais uma tosse cheia de sangue – Eu não posso matar.
– Olhe aqui! Preste atenção, isso é o que você é agora! Não me interessa o que você era  antes! Mesmo por que você sempre foi um assassino, ou você também chorava por cada uma das vacas, frangos e peixes que morreram para que você tivesse tantas refeições! Nada mudou! Só o rebanho. Nada mais. Se te agrada, feche os olhos e veja uma vaca na hora de se alimentar, não me importo! Mas, não negue que você é um caçador. E que a humanidade é sua caça! Talvez nós até sejamos o elemento de equílibrio, que evita que a humanidade se alastre ainda mais como uma praga e destrua o mundo. Não me  importa.  A única coisa que importa é o sangue! Entregue-se a ele e viva sua nova vida! Aproveite!
– Mas…
– Não! Sem ‘mas’. Você me procurou, você queria minha opinião profissional. Agora, escute e escute bem! Esta é sua última consulta. Você não vai morrer, mesmo eu te abandonando aqui, o sangue vai te curar. Em poucos dias, você estará como novo. Mas, eu estarei por perto, observando. Você só precisa viver a sua nova vida, aceitando o que você é. Isso vai acabar com o choro e sofrimento. Mas, não se preocupe, se você não conseguir eu mesma irei acabar com eles. Ao terminar de falar, Luana se virou e começou a caminhar, mas seu paciente ainda queria mais:
– Espere…
– Não, a sua hora acabou! Espero que tenha aproveitado e entendido bem. Se nos encontrarmos novamente, não será como terapeuta e paciente. Adeus! E assim, ela saiu. Para seus próprios problemas, dúvidas, necessidades e é claro para iniciar sua vigilância.

CERTAS COISAS DE QUEM TEM CERTA IDADE…

Luana Herek (Fev/2006)

Na casa dos 20 anos, eu costumava brincar, falando nostalgicamente: “Ah! Meus 40 anos…”. E quando perguntavam minha idade, respondia: “Tenho 25, Ah, mas quando eu chegar aos meus 40…”.
Quase como castigo para minha língua zombeteira, os 40 anos estão chegando, muito mais rápido do que eu esperava. Chegando não, (a quem eu quero enganar) chegaram! Estão batendo na minha porta, todos eles, e entrarão com tudo no próximo mês. Para mim são os 40, mas para você pode ser os 30, os 50, os 60, os 70, os 80….
A notícia veio de repente, num dia comum e silvestre. Numa consulta de rotina, minha ginecologista me deu, como se fosse à coisa mais natural do mundo, uma requisição para realizar uma mamografia. Pra que? “Quando a gente chega numa certa idade, é preciso investigar outras questões em nosso organismo”.
Na semana seguinte foi à vez do oftalmologista. A mesma história sem dó nem compaixão: um pedido de exame escabroso com a mesma justificativa, “quando a gente chega numa certa idade…”
Fiz piada, dei risada: “Cheguei numa certa idade!”.
Percebi então, que nos últimos tempos rondavam minha cabeça certas coisas que não haviam se aproximado antes, ou se haviam, eu sempre fiz questão de deixá-las na pasta de itens menos urgentes, pois teria muito tempo pela frente para lidar com elas.
Essas certas coisas, de gente que tem uma certa idade, visitam campos variados: começa com uma fútil e exagerada preocupação com a aparência (Todas aquelas coisas com nomes horrorosos: ruga, manchas e todas as “ites” e “oses” que de uma forma ou de outra, sempre estiveram ali, mas agora começam a saltar aos olhos), passa pela avaliação do que já foi feito na vida e chega fatalmente num levantamento do que está por realizar.
Uma constatação é brutal: a sensação de que o tempo é curto, “it is now or never”! Tudo com o que você flertava e ia pensando que um dia iria fazer, quando tivesse tempo, tem que ser aqui e agora! (Como Fritz Perls estava certo!).
Simplesmente porque a finitude mostra a cara. Seus pais, se estiverem por aí, começam a dar sinais de cansaço, de peso, de limitações: não querem mais dirigir em viagens longas, tem a voz mais fraca, o andar mais arrastado a conversa menos ágil.
Seus filhos estão com uma autonomia invejável (que você nem sonhava ter na idade deles) e deixam claro que logo, logo você será, na melhor das hipóteses, um ator coadjuvante, e por conseqüência, um ser livre de tantos cuidados e obrigações.
É, e você começa a ficar com medo do tempo que vai sobrar e que você poderá utilizar para fazer todas aquelas coisas que você jurou, só não fazia, porque não tinha tempo. É a queda magistral do álibi de tantos anos, que começa a desmoronar como um castelo de areia sendo levado pelas ondas. E não adianta se desesperar e tentar segurar, a areia vai escorrer por entre os seus dedos.
Por outro lado, você não precisa mais fazer muitas coisas das quais não gosta, pode se dar ao direito de escolher entre uma série de possibilidades. Não que as escolhas não estivessem sempre à disposição, mas numa “certa idade” menos coisas nos distraem.
Está armada a arapuca. Existe um intervalo angustiante entre a perda dos álibis e a re-ação. Sabemos que precisamos reagir, mas em que direção? O que realmente importa na vida?
Que pergunta difícil, de respostas inusitadas. Se nos permitimos tempo para reflexão e nos perguntamos com mais freqüência o “pra que” de nossas ações, reagimos menos compulsivamente.
Começa a emergir o vislumbre de um equilíbrio entre a disciplina do trabalho (para perseguir e atingir as metas) e a espontaneidade da criatividade no dia-a-dia (para não deixar escapar as oportunidades que se apresentam), para que tudo não se torne tão controlado que fique preso e nem tão solto que caia no descontrole. É a tensão ideal que deve estar presente no tecer do tear.
As prioridades vão se modificando, a ansiedade é menor. Não sei se menor ou se nos acostumamos mais a ela e não entramos em pânico. Descobrimos que a busca das coisas ordinárias, não são objetivos suficientes para justificar a nossa existência. E então pensamos que temos de recomeçar, fazer algo novo, que de prazer, que envolva, que faça diferença na vida das pessoas.
É preciso coragem. Coragem para não fechar os olhos diante de todas as percepções e sinais. Coragem para não jogar fora essa nova oportunidade de se rever, reinventar e refazer.
Se você está achando esse papo muito doido, ou não tem a menor idéia do que estou falando, não se preocupe, você não chegou naquela certa idade!

OS DESAFIOS DE SER UM TERAPEUTA RELACIONAL SISTÊMICO

Luana Herek

1ª. Jornada de terapia Relacional Sistêmica – Mesa redonda “Os desafios de ser um Terapeuta Relacional Sistêmico” – Curitiba – 21 de Março de 2009.

Em primeiro lugar, gostaria de agradecer a comissão organizadora do evento pelo convite para participar desta mesa. Desde que recebi o convite, fiquei pensando sobre o que eu iria falar pra vocês, sem ser repetitiva.
Busquei luz no ultimo livro da Solange Rosset, onde estão todos os conceitos da terapia relacional sistêmica e pensei que segui-los por si só, principalmente quando tentamos não somente aplicá-los aos nossos clientes, mas também a nós mesmos, já é um grande desafio.
Em seguida comecei a pensar em meus desafios pessoais como terapeuta relacional sistêmica, entre tantos desafios que enfrentei e enfrento como profissional, escolhi um para refletir sobre: o desafio da construção da relação entre o terapeuta e o cliente, a construção de um relacionamento terapêutico baseado em compromisso, franqueza e igualitarismo. Terapeuta e cliente como companheiros de viagem, nas palavras de Irvin Yalom, um termo que suprime as distinções entre eles (os aflitos) e nós (os que curam), já que estamos todos juntos nisso e não existe nenhum terapeuta e nenhuma pessoa imune as tragédias da vida. O reconhecimento de que somos simplesmente humanos.
É extremamente importante cuidarmos da nossa relação com o cliente: como estamos hoje? Como esta o espaço entre nós hoje? Se não checamos constantemente o ponto de vista do cliente, podemos nos enganar profundamente. Os clientes enxergam as horas da terapia de uma forma muito diferente da do terapeuta.
Provavelmente todos nós já fomos surpreendidos com algum comentário parecido com esse: “Uma vez você me falou algo que eu nunca vou esquecer….” e você jamais lembra de ter feito esse comentário, pois para você não foi nenhuma intervenção brilhante, mas para o cliente, foi algo muito poderoso.
As opiniões dos clientes sobre os acontecimentos que foram importantes, geralmente são acontecimentos relacionais. Uma cliente me relatou algumas sessões depois, o quanto eu tinha feito por ela, o quanto tinha se sentido acolhida, em um dia quando acabou a luz em meu consultório e tivemos que descer as escadas com uma lanterna que eu tinha, e como chovia muito e meu carro estava na garagem do prédio, eu lhe dei carona até seu carro que estava na rua, um pouco mais distante. Esse acontecimento teve grande impacto sobre ela e muitos desdobramentos.
O terapeuta e o cliente não vivenciam a mesma experiência durante aquela hora da sessão. É extraordinariamente difícil saber o que o outro realmente sente. Essa é uma preocupação muito atual de David Burns. Ele mostrou no ultimo evento da Fundação Milton Erickson em San Diego, uma pesquisa que vem realizando através de um questionário que aplica nos clientes antes e depois de cada sessão de terapia. Esse experimento tem demonstrado algumas coisas surpreendentes:
1) A precisão na percepção que o terapeuta tem sobre os sentimentos do cliente em termos de severidade dos sintomas: varia de 0 -10%.
2) A precisão na percepção que o terapeuta tem da aliança terapêutica entre terapeuta e cliente em termos de empatia, ajuda terapêutica, sentimentos negativos: varia de 0 -10%.
3) Quantos clientes desistem antes do tempo da terapia? 57% dos clientes desistem antes de alcançar algum objetivo terapêutico.
Talvez não possamos usar questionários como David, mas podemos usar estratégias de aproximação como sugere Yalon? A questão é: como podemos de fato construir e manter uma relação útil com o cliente?
Os problemas interpessoais do cliente se manifestarão no aqui e agora do relacionamento terapêutico. Um estímulo pode provocar reações diversas entre os diferentes clientes: como o cliente nos cumprimenta, como ele tenta esticar a hora, como ele inspeciona o ambiente ou critica nosso consultório, etc, são informações valiosas, situações cotidianas que se repetem na relação cliente-terapeuta. Através desse olhar relacional podemos descobrir no aqui e agora o que existe de disfuncional nas interações do cliente e seu ambiente.
Quando existe a pontuação de algo na relação entre o terapeuta e o cliente, algo que esta acontecendo entre eles, se pode usar essas observações no trabalho para que o cliente faça as conexões desse mesmo padrão com outras experiências que lhe são familiares. A melhor forma de aprendermos sobre nós mesmos e sobre nosso comportamento é pela participação pessoal na interação, combinada com a observação e analise dessa interação.
Nossos próprios sentimentos como terapeutas são dados preciosos, que podemos usar para nos guiar, ou se for útil para o cliente, fornecer-lhes nossas impressões através de um feedback eficiente mas delicado.
Com isso, podemos ajudar os clientes a diminuir o ponto cego, ou seja diminuir a distancia entre como ele se vê e como os outros o vêem. Também na terapia e através do feedback do cliente, o terapeuta também tem a chance de diminuir seu ponto cego, principalmente se dirigir sua escuta para as observações que se originam no aqui-e-agora e estão concentrados nos sentimentos gerados no cliente e não em interpretações ou suposições.
A auto-revelação do terapeuta deve ser cuidadosa, e usada sempre para que se cumpra o objetivo do cliente e nunca a agenda do terapeuta. A revelação do terapeuta gera a revelação do cliente.
Danny Kahneman and Amos Tversky ganharam um nobel, por descobrirem que não somos seres racionais, descobriram que o nosso pensamento não é lógico e matemático e sim ocorre num procedimento de solução por tentativa e erro.
Eles verificaram que as pessoas respondem de acordo com a forma como a questão é colocada, chamaram isso de efeito de enquadramento. A relação terapêutica é uma grande oportunidade para novos enquadres.
Alguns dos problemas de interpretação do comportamento humano frente ao risco esta relacionado com o funcionamento das pessoas, que tomam decisões com base em avaliações subjetivas de probabilidades que provavelmente são muito diferentes das probabilidades reais.
De acordo com os resultados de uma pesquisa que foi realizada, as pessoas subestimaram a probabilidade de morte por causa natural e superestimaram as probabilidades de morte por causas não naturais. Isso indica que provavelmente as pessoas dão mais atenção à preocupação com perigos não naturais do que a preocupação com perigos naturais.
Então se o desafio da construção da relação terapêutica passa pela necessidade do cliente e do terapeuta diminuírem seu ponto cego, passa pela possibilidade de as pessoas enxergarem de forma diferente mudando o enquadramento, e passa pelo contato do cliente com avaliações mais objetivas dos riscos que envolvem suas escolhas para que ele possa fazer escolhas mais conscientes, voltamos ao nosso feijão com arroz: desenvolver dentro e através da relação terapêutica a conscientização, levantar as aprendizagens necessárias e fazer as mudanças desejadas.
Para mudança é necessário energia e motivação, e nem sempre é essa pessoa que aparece no consultório. Existe duas coisas que motivam os seres humanos: coisas que queremos evitar e coisas que queremos alcançar.
É importante que o processo de mudança seja baseado em um processo de pequenos passos. Qualquer mudança feita ou qualquer novo elemento, por menor que seja, introduzida no padrão quebra o padrão e pode produzir mudanças maiores.
Quebrar padrões são formas de iniciar mudanças, principalmente se não consideramos os problemas como entidades fixas, mas sim como processos e padrões que podem ser mudados a qualquer momento.
Mudança é: “… um processo evolutivo. Raramente é revolucionário. É uma viagem de muitos passos – mas não começa até você dar o primeiro.” Knaus

O MAL BUSCA A VERDADE

Jean Felipe Felsky

É a 23ª noite seguida que choro, mas nenhuma lágrima corre de meus olhos, não, é sempre sangue que deles vertem. Pela 23ª noite eu sinto a dor de estar morto, embora ainda vivo. Não, tampouco vivo eu estou, meus órgãos já não funcionam. Não respiro, não como e não bebo, a minha única fome é a de sangue. Depois daquele dia em que ele apareceu e bebeu de mim nada foi como antes. E o desgraçado ainda me abandonou sem sequer dar explicações e com uma terrível maldição. Não, ele me deixou com a minha fome, somente. Normalmente, eu me escondo e fujo, ninguém pode saber o que sou. Mas, hoje preciso de ajuda. Eu não posso viver e não-viver assim. Eu tinha algumas opções: ir à polícia, mas eles acabariam me prendendo e viraria pó na primeira manhã na cela. Quem sabe, poderia ir à igreja, mas, diabos, nunca acreditei na igreja ou Deus, não seria agora que me curvaria à eles. Enfim, minha esposa me abandonou me acusando de estar louco. Talvez esteja mesmo, talvez a única pessoa que possa me ajudar seja um psicólogo.
Chego no consultório da Dra Luana pouco antes das vinte horas, não podia ser mais cedo nesse verão que faz com que o dia se estenda ao máximo, mas também não poderia exigir mais tarde do que isso. Sou atendido pela própria doutora, uma mulher alta, magra, bonita, de cabelos curtos e loiros e de olhar forte e penetrante. Sorridente, me convida a entrar. Muito elegante e gentil me faz sentar. Claramente notou minha extrema palidez, mas nada comentou.
Ela inicia com perguntas normais: qual seu nome, sua idade, e logo chega na que eu justamente esperava: O que você faz?
— Eu sou um vampiro — pronuncio cada palavra correta e pausadamente e espero por sua reação. Sem hesitar ela faz algumas anotações em seu bloco de notas e prossegue com as perguntas:
— Você quer dizer que desgasta as pessoas que estão ao seu redor, sugando-lhes a energia?
— Não doutora, o que quero dizer é que rasgo-lhes a pele com meus dentes e tomo-lhes o sangue até a morte — não sei se o que mais a espantou foi a resposta em si, ou a frieza com que lhe falei.
— Doutora, não vamos poder continuar desta maneira, deixe-me lhe mostrar — Concentrando-me um pouco, faço meus caninos aparecerem e puxo as sombras de todos os cantos do aposento, tornando-o muito mais escuro. Não sei como, mas elas sempre me obedecem. Só sei que agora ela está com medo, talvez não precisasse ter feito isso, mas preciso ter certeza que ela acredita e que me leva a sério. Assim, sei que tenho sua atenção. Prossigo:
— Doutora, eu sou o que sou e faço o que digo, mas preciso de ajuda! Eu choro toda a noite, sinto uma dor incomparável, tenho fome e não posso mais sobreviver com o peso das mortes nas minhas costas!
— Mas, meu Deus, você nem deveria existir se o que você afirma for verdade. Por favor, me conte como foi o início desta tragédia, me dê detalhes. Talvez, ela ainda tenha esperanças de que eu seja apenas um maluco muito criativo. É difícil quebrar um paradigma assim tão grande, mas tenho que respondê-la, pois a verdade é a única que pode me salvar. Mandei as sombras voltarem aos seus lugares e retraí meus caninos.
— Faz 23 dias, ou melhor, noites. Era um dia comum, como tantos outros. Fiz hora extra no serviço e saí tarde da noite. No caminho para casa sentia algo estranho, mas não conseguia definir o que era. Num beco mais escuro, ele surgiu de repente e me atacou, me levou ao chão, me segurou e me puxou por uma porta no fim do beco. Era uma salinha tosca e suja, parecia um antigo depósito. Ali, ele cravou seus longos caninos em meu pescoço e bebeu de meu sangue. Eu ia morrer, eu sabia. Enfraqueci e logo fechei os olhos. Senti uma dor terrivelmente aguda no peito e vi a famosa luz branca com uma indescrítivel beleza. Sentia que estava prestes a deixar meu corpo, quando ele lentamente cortou seus pulsos e me deu de beber. Senti outra dor agonizante, muito mais forte. A luz começou a sumir lentamente, minha alma ainda tentava alcançá-la, mas era como se a dor que sentia mantivesse-a presa ao meu corpo. Parece que fiquei uma eternidade ali; toda minha vida passava em flashes diante dos meus olhos. Finalmente, a dor venceu. Senti minha alma subitamente voltar ao meu corpo. A luz sumiu e, com uma sensação imensa de tristeza, acordei. Levantei, agora como vampiro. Estava só. O desgraçado que fizera isso comigo desapareceu. Sai daquele beco imundo e vi o mundo com novos olhos. Tudo era maravilhosamente lindo; o reflexo da luz na poça, as minúsculas gotículas de chuva e até a placa do carro que eu conseguia ler a quase três quarteirões de distância. Os sons da noite me inundavam e sentia o sabor da leve brisa que soprava em todo o meu corpo. Passado o deslumbramento da minha nova condição comecei a perceber que havia algo errado. Antes, não chovia e a noite estava muito abafada, nem mesmo as estrelas que antes via com tanta clareza encontrava nos céus. Não, o tempo não podia ter virado tão bruscamente assim. O que estava acontecendo eu não sabia, mas precisava voltar para casa. No caminho, uma sensação que nunca havia sentido me tomou; uma terrível sensação de tristeza, melancolia e solidão, mas muito mais intenso, quase palpável, quase física, quase como se fosse… fome. Para o meu desespero, quando cheguei em casa descobri que era exatamente a última, uma sensação que se tornou constante. Ao abrir a porta, minha esposa me aguardava, extremamente nervosa. Acusava-me de ter ficado mais de um dia fora de casa, perguntando onde estava e o que havia acontecido. Eu nada entendia, mas tudo começou a fazer sentido. Eu havia ficado um dia inteiro abandonado naquele beco e levara um dia para voltar à vida. Enfim, eu tentava explicar-lhe e ela não acreditava, mas é claro; quem iria acreditar numa história bizarra dessas? Discutimos e no meio da confusão ela se cortou, um pequenino corte, mas o suficiente para me transformar em outra pessoa. Quando vi aquela pequena gota de sangue, aquele sentimento voltou com muito mais força, me dominou e a ataquei. Eu ataquei a minha própria esposa! Não sei como ela conseguiu juntar forças para me tirar de cima dela e sangrando saiu de casa correndo, neste momento voltei a mim e chorei pela primeira vez. Naquela noite rolei minhas primeiras lágrimas de sangue. Deixei-lhe um bilhete e sumi, pois temia em atacá-la novamente. De lá para cá, vago pela noite procurando alimento e esconderijos sombrios — a psicóloga ouvia atentamente a tudo que eu dizia e fazia várias anotações. Quando viu que havia terminado meu relato, ela prosseguiu:
— Realmente é uma história e tanto, mas e as suas vítimas? Elas não são sempre fatais? Você pode não matar? Mas, mesmo assim você me disse que mata e se arrepende. Não seria mais fácil não matar e não ter do que se arrepender? Como você as escolhe e como fez para não ser pego até hoje?
— Bem, doutora, não é fácil. Quando a fome está no controle, você não para. Você quer sempre mais, aquilo te faz bem, aquilo é prazeroso. Mas, só enquanto ela está no controle, depois disso eu choro. Pensando nisso, eu tentei me enganar, escolho minhas vítimas sempre na escória, procuro por bandidos e traficantes. Pessoas que talvez aliviem um pouco mais a minha consciência, mas de qualquer maneira ainda são pessoas. Pessoas que talvez não chamem tanto a atenção da polícia e por isso eu ainda não fui pego, mas no fim é mais um ser humano que perde a vida. Eu fiz uma mãe e um pai chorarem, talvez uma esposa e alguns filhos e, com certeza, eu junto deles, todas as noites.
— Então, não mate. Este é o momento de você ficar no controle. Essa noite, meu Deus, não acredito que estou falando isso, quando você for se alimentar, procure uma pessoa como a sua esposa, uma mulher que lhe faça lembrá-la. Você não vai querer matá-la. Talvez, isso te dê forças para frear seu ímpeto e você vai aprender aos poucos como segurar essa sua terrível fome.
— Doutora, você não entende, não há força nesse mundo que pare a minha fome.
— É claro que não entendo, quantos vampiros você acha que aparecem no meu consultório? Não entendo, mas nós temos que fazer algo para você ficar melhor, para superar tudo isso. Você não pode mais ser um assassino.
Nesse momento, percebo que ela jamais poderá me ajudar, nenhum mortal poderá. Sendo assim, tudo fica claro e sei o que devo fazer. Novamente convoco as sombras e falo com firmeza, marcando bem as palavras.
— Doutora, você tem razão, você não pode me ajudar, pois não me entende. Você ouviu todos os meus segredos, mas mesmo assim não pode me ajudar. Porém, venha aqui, sei o que fazer, lhe darei os melhores meios para entender…

FIM

PSICODIAGNÓSTICO E DIAGNÓSTICO EM PSICOLOGIA CLÍNICA

Artigo Publicado na revista: Psicologia Argumento. Curitiba, v.21, n.32, p. 17-21, janeiro.

Janice Ornieski de Souza
Luana Herek
Wanda Maria Faria Giroldo

Resumo
Diversos autores foram fonte de estudo para lançarmos a reflexão sobre a complexidade, importância, utilidade e necessidade de se fazer diagnóstico psicológico no processo psicoterapêutico, buscando compreender o sofrimento humano.
A diferenciação entre os termos diagnóstico psicológico e psicodiagnóstico é descrita, assim como vários critérios que devem ser observados para se alcançar um resultado de qualidade.

Abstract
Many authors were the source of study to throw the reflexion about the complexity, importance, utility and necessity of the psychological diagnose in the psychotherapy process, trying to comprehend the human suffering.
The differentiation between these terms psychological diagnosis and psycho diagnosis is described, as well various criteria that must be observed to reach a quality result.

Na tentativa de compreender o ser humano, diferentes olhares vêm construindo a história do diagnóstico que teve início com a descrição dos afetos e humores, passou pelos testes de personalidade e inteligência chegando ao DSM. A partir daí, a importância da reflexão sobre a complexidade da questão do diagnóstico se coloca, deixando espaço para novas possibilidades.
De forma geral, os psicólogos reconhecem a importância, a utilidade e a necessidade de categorizar, de buscar semelhanças e diferenças na compreensão do sofrimento humano. Por outro lado, existe o receio em comprometer a individualidade das pessoas, classificando-as.
Muitos autores já escreveram sobre o processo do diagnóstico de diferentes formas e para diferentes fins. E ainda, existe a necessidade de esclarecer e diferenciar o termo diagnóstico, que muitas vezes se confunde com psicodiagnóstico.
De acordo com ARZENO (1995), psicodiagnóstico é diferente de diagnóstico psicológico, pois todo psicodiagnóstico pressupõe a utilização de testes, enquanto no diagnóstico psicológico esses instrumentos nem sempre são necessários ou pertinentes.
Psicodiagnóstico é um processo científico, limitado no tempo, que utiliza técnicas e testes psicológicos (input), em nível individual ou não, seja para entender problemas à luz de pressupostos teóricos, identificar e avaliar aspectos específicos, seja para classificar o caso e prever seu curso possível, comunicando os resultados (output), na base dos quais são propostas soluções, se for o caso. (CUNHA, 2000, p. 26).
O objetivo do processo psicodiagnóstico segundo OCAMPO (1981), é descrever e compreender a personalidade total do paciente, os aspectos do passado, presente e futuro. É um processo limitado no tempo que enfatiza a investigação dos sintomas e as características da indicação, através de técnicas como: entrevista semidirigida, técnicas projetivas, entrevista de devolução.
Um psicodiagnóstico completo e corretamente administrado, na visão de ARZENO (1995), permite estimar o prognóstico do caso e a estratégia e/ou abordagem terapêutica mais adequada para ajudar o cliente. As entrevistas diagnósticas vinculares familiares são de grande utilidade para decidir entre a recomendação de um tratamento individual, vincular ou familiar.
O psicodiagnóstico para CUNHA (2000), deve partir de um levantamento de hipóteses a serem confirmadas ou refutadas, através de um processo pré-determinado e objetivos específicos. O processo estabelece um plano de avaliação, num tempo previamente contratado entre paciente ou responsável e o psicólogo. Este plano define os instrumentos necessários, como testes e técnicas, de que forma e quando utilizá-los, baseado nas hipóteses formuladas inicialmente.
Os dados obtidos através da bateria de testes e técnicas, deverão ser analisados, interpretados e integrados com as informações da observação, da história clínica e pessoal, chegando ao diagnóstico e prognóstico do caso. A partir daí os resultados são comunicados a quem de direito.
No processo de operacionalização CUNHA (2000), ressalta a necessidade de considerar os comportamentos específicos do psicólogo e os passos do diagnóstico de acordo com o modelo psicológico de natureza clínica.
Segundo VAN KOLCK (1984), as técnicas projetivas devem ser consideradas como um instrumento para o diagnóstico psicológico. Defende que uma técnica não vai trazer em si o diagnóstico, mas poderá representar importante contribuição. Outros procedimentos como observação e entrevistas, também devem ser considerados.
O reconhecimento da qualidade do psicodiagnóstico tem relação com a escolha adequada dos instrumentos, com a capacidade de análise e a inter-relação dos dados quantitativos e qualitativos, tendo como ponto de referência às hipóteses iniciais e os objetivos do processo. Isso aponta para a competência do profissional, que é o psicólogo clínico e é fundamental que ele consiga exercer bem essa tarefa.
Ao elaborar um psicodiagnóstico é imprescindível considerar as verdadeiras razões que motivaram o encaminhamento. Para CUNHA (2000), o processo pode ter um ou vários objetivos, dependendo dos motivos do encaminhamento, conforme resumo no quadro abaixo:

Objetivos
Especificação
Classificação simples O exame compara a amostra do comportamento do examinando com os resultados de outros sujeitos da população geral ou de grupos específicos, com condições demográficas equivalentes; esses resultados são fornecidos em dados quantitativos, classificados sumariamente como em uma avaliação de nível intelectual.
Descrição Ultrapassa a classificação simples, interpretando diferenças de escores, identificando forças e fraquezas e descrevendo o desempenho do paciente, como em uma avaliação de déficits neuropsicológicos.
Classificação nosológica Hipóteses iniciais são testadas, tomando como referência critérios diagnósticos.
Diagnóstico diferencial São investigadas irregularidades ou inconsistências do quadro sintomático, para diferenciar alternativas diagnósticas, níveis de funcionamento ou a natureza da patologia.
Avaliação compreensiva É determinado o nível de funcionamento da personalidade, são examinadas as funções do ego, em especial a de insight, condições do sistema de defesas, para facilitar a indicação de recursos terapêuticos e prever a possível resposta aos mesmos.
Entendimento dinâmico Ultrapassa o objetivo anterior, por pressupor um nível mais elevado de inferência clínica, havendo uma integração de dados com base teórica. Permite chegar a explicações de aspectos comportamentais nem sempre acessíveis na entrevista, à antecipação de fontes de dificuldades na terapia e à definição de focos terapêuticos, etc.
Prevenção Procura identificar problemas precocemente, avaliar riscos, fazer uma estimativa de forças e fraquezas do ego, de sua capacidade para enfrentar situações novas, difíceis, estressantes.
Prognóstico Determina o curso provável do caso.
Perícia forense Fornece subsídios para questões relacionadas com “insanidade”, competência para o exercício das funções de cidadão, avaliação de incapacidades ou patologias que podem se associar com infrações da lei, etc.
Fonte: Cunha, in Taborda, prado-Lima & Busnello, 1996, p.51 (reproduzido no livro Psicodiagnóstico-V com autorização da Editora)
Na visão de VAN KOLCK (1984), caminha-se cada vez mais, no sentido de chegar a um “modelo psicológico” de diagnóstico:
… essa evolução vem se processando aceleradamente nos últimos anos: em vez de buscar o(s) sintoma(s) para enquadrar em uma síndrome e dar um rótulo, procura-se chegar a uma descrição e compreensão da personalidade com ênfase na dinâmica do caso. Não devemos esquecer que a identificação de indícios patológicos e a descrição de síndromes podem auxiliar como uma linguagem conhecida sobre a qual se trabalha, mas não se pode tomá-los como rótulo. (VAN KOLCK, 1984, p. XII).
A psicologia clínica, num primeiro momento, se associa à idéia de doença, pois como coloca AUGRAS (1981), descende em linha direta da psicopatologia e não consegue disfarçar a evidência da filiação. Não haveria problema nisso se a psicologia clínica conseguisse tornar-se autônoma, se elaborasse os seus próprios conceitos e a sua linguagem específica.
Outro ponto a considerar segundo ADRADOS (1980), é a necessidade de isenção de qualquer preconceito por parte do psicoterapeuta sobre o estado de saúde do indivíduo a examinar, não forçando qualquer tipo de desajuste.
Afirma que: “… todos os seres humanos, por maior que seja seu comprometimento emocional ou mental, têm recursos de forma que, se ajudados possam vir a superar seus problemas”. (ADRADOS, 1980, p. 37).
Para essa autora existe a necessidade de olhar o ser humano inserido num contexto, num sistema socializado, dando ênfase aos aspectos positivos de sua personalidade, observando o ego e sua força, vulnerabilidade, normalidade ou patologia.
Essa perspectiva, embora muito importante, não preenche todos os requisitos necessários à prática psicoterapêutica, que exige formas de diagnóstico que auxiliem na direção da intervenção e no processo.
Em função dessa necessidade, muitos psicoterapeutas se dedicaram em buscar uma ferramenta específica que contemplasse as exigências de uma avaliação na prática clínica, agregando os objetivos psicoterapêuticos de longo prazo.
Em seu livro Processo, Diálogo e Awareness, YONTEF (1998) escreve que o termo diagnóstico teve origem em duas palavras gregas, que significam “saber” e “por meio de ou entre”. Num significado mais amplo, refere-se a distinguir ou discriminar.
Um bom diagnóstico clínico está na base de qualquer trabalho, segundo ARZENO (1995). Diagnóstico pode ser compreendido sempre que se explicita a compreensão sobre um fenômeno. Se o psicoterapeuta é consultado, fica caracterizada a existência de um problema, alguém sofre ou está incomodado e a verdadeira causa deve ser investigada.
O objetivo do diagnóstico segundo VAN KOLCK (1984), é buscar uma compreensão efetiva e humana da pessoa por meio de uma descrição dinâmica, em que a etiologia do quadro também seja considerada. Para essa autora não é objetivo do diagnóstico psicológico catalogar o sujeito, tampouco enumerar os elementos constitutivos de sua personalidade.
Diagnosticar é discernir os aspectos, características e relações que compõe um todo. “Quando procuramos ler determinado fato a partir de conhecimentos específicos, estamos realizando um diagnóstico no campo da ciência ao qual esses conhecimentos se referem”. (TRINCA, 1984, p. 01).
Identificar e explicitar o modo de existência do sujeito no seu relacionamento com o ambiente, em determinado momento, é uma forma de diagnosticar. “O diagnóstico procurará dizer em que ponto de sua existência o indivíduo se encontra e que feixe de significados ele constrói em si e no mundo”. (AUGRAS, 1981, p. 12).
O cliente manifesta a sua realidade de várias maneiras diferentes. Para AUGRAS (1981), a manifestação se dá a partir da sua fala, onde são trazidas as suas vivências, a sua história, o seu corpo, a sua estranheza, o seu fazer-se. O diagnóstico apreende o indivíduo em sua realidade e esse processo é fruto da co-autoria entre cliente e psicoterapeuta.
Diagnosticar é uma condição do conhecimento e não uma opção. Para VAN KOLCK (1984), é importante chegar a um todo integrado de significados que forneçam uma compreensão dinâmica da personalidade do indivíduo.
“O fato é que a prática e a teoria se alimentam mutuamente. Uma não se desenvolve sem a outra, não podendo haver desvinculação e nem subordinação total entre elas”. (ANCONA-LOPES, 1984, p. 10).
A prática psicológica deve ser claramente articulada a uma teoria na reflexão de ROSA (1995), que defende:

Abster-se do diagnóstico é ficar a mercê de critérios imponderáveis, do senso comum, das emoções e preconceitos, da ideologia. Tanto a teoria como suas conseqüências práticas devem ser expostas à crítica, à revisão e, se necessário, ao abandono, quando não se fizerem mais consistentes. Dessa forma a psicologia se torna uma prática regulada, regida por princípios claros. As boas intenções ou o desejo de fazer o bem não são práticas psicológicas. (ROSA, 1995, p. 62).
Muito embora, a forma e os modelos de diagnóstico se mostrem variados, o que se evidencia é a necessidade e a importância de se fazer uso do diagnóstico ou do psicodiagnóstico num trabalho psicoterapêutico.
A preocupação em preservar a singularidade de cada cliente, não os limitando a conceitos pré-estabelecidos, aparece com destaque como um ponto comum a todos os autores estudados.
Compreender como o indivíduo se desenvolve, de que maneira o seu funcionamento efetiva sua existência a partir de uma realidade fenomenológica é diagnosticar e parece ser condição necessária para o profissional auxiliar seu cliente no seu processo de conscientização, aprendizagem e mudança.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ADRADOS, I. Manual de Psicodiagnóstico e Diagnóstico Diferencial. Petrópolis: Vozes, 1980.
ANCONA-LOPES, M. Contexto geral do diagnóstico psicológico. In: TRINCA, W. Diagnóstico Psicológico. São Paulo: EPU, 1984.
ARZENO, M. E. G. Psicodiagnóstico Clínico: novas contribuições. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.
AUGRAS, M. O ser da compreensão: fenomenologia da situação de psicodiagnóstico. Petrópolis: Vozes, 1981.
CUNHA, J. A. Psicodiagnóstico-V. 5a. Ed. rev. Porto Alegre: Artes Médicas, 2000.
OCAMPO, M. L. S. O Processo Psicodiagnóstico e as técnicas projetivas. São Paulo: Martins Fontes, 1981.
ROSA, M. D. Considerações sobre a polêmica do diagnóstico na psicologia. Psicologia Revista. São Paulo, set. 1995.
TRINCA, W. Diagnóstico Psicológico. São Paulo EPU, 1984.
YONTEF, G. M. Processo, Diálogo e Awareness. São Paulo: Summus, 1998.
VAN KOLCK, O. L. Testes projetivos gráficos no diagnóstico psicológico. São Paulo: Editora Pedagógica e Universitária Ltda. – EPU, 1984.

O DIAGNÓSTICO PELA LENTE DA GESTALT-TERAPIA

Artigo publicado pela Revista de Gestalt – Número 10 – 2001

Janice Ornieski de Souza
Luana Herek
Wanda Maria Faria Giroldo

Resumo
Este estudo teórico tem como objetivo tratar da delicada questão do diagnóstico na abordagem gestáltica, buscando refletir sobre a forte presença do uso dessa ferramenta entre os gestalt-terapeutas. Propõe a reflexão sobre a necessidade e importância do diagnóstico na prática clínica, suas diferentes formas, e o ponto comum entre os diversos autores estudados.

Abstract
This theoric paper has as objective to treat of delicate question about diagnose in gestalt approach, searching to reflect about the strong presence in utilization this tool among the gestalt-therapists. It propose a reflexion about the need and importance of diagnose in the clinical practice, its different forms and the common issue among the different authors that have been studied.

A necessidade de se fazer diagnóstico e as divergências sobre esse tema em Gestalt-terapia, solicitam uma revisão sobre o assunto, que implica refletir sobre o momento da história, a cultura, as limitações, a necessidade do diagnóstico na prática psicológica e suas formas.
A visão histórica do processo diagnóstico para YONTEF (1998), parte da psicanálise clássica. Nessa, o diagnóstico enfatizava as interpretações, ficando distante da experiência imediata, favorecendo diagnósticos do tipo médico, não baseados em descrições comportamentais. A fase de diagnóstico era muito longa, o terapeuta mantinha distância do paciente ficando numa posição hierarquicamente autoritária, sem acreditar na capacidade deste de escolher e crescer, de reconhecer sua situação pessoal por si próprio.
Havia pouco espaço para espontaneidade, diversidade, escolha, diálogo e emergência. O potencial vital e criativo do terapeuta, do paciente e da relação era severamente limitado e também havia a tendência de tratar a doença e não a pessoa.
Houve uma corrente dentro da Psicanálise, que incluía teóricos neo-freudianos como: Rank, Reich, Horney, que deu mais ênfase social na teoria da personalidade da psicanálise, em vez da ênfase freudiana de pulsões inatas e desenvolvimentos maturacionais pré-estabelecidos, além de propor um modelo de terapeuta mais ativo do que o modelo clássico, que acreditava no potencial de crescimento humano e na importância do relacionamento.
Porém algumas idéias foram mantidas: o pensamento e o comportamento eram determinados por pulsões inconscientes; o gerenciamento e a análise da transferência continuavam como técnica central do tratamento; a ênfase na interpretação continuou como intervenção principal e mantiveram o modelo de causalidade linear, mecanicista, no qual se acreditava que o presente é determinado de maneira linear por eventos do passado.
Em seguida surgiu o movimento humanístico existencial que protestava contra essa tendência, onde teóricos da vanguarda desse movimento, bem como a Gestalt-terapia acreditavam numa teoria fenomenológica da consciência, numa teoria dialógica do relacionamento e numa teoria de processo de causalidade não linear.
A ênfase estava na singularidade do indivíduo, o qual era tratado como uma pessoa inteira. O relacionamento era horizontal ao invés de vertical, terapeuta e paciente trabalhavam juntos, a autoridade estava na experiência factual de ambas as partes para com o diálogo terapêutico.
“O movimento do potencial humano colocou a psicoterapia no segmento de verdade-e-compreensão, em vez de o segmento de cura-doença. Nessa atmosfera volátil, o diagnóstico foi jogado fora junto com a teoria pulsional, com o inconsciente indisponível, com a transferência induzida pelo terapeuta e com a causalidade mecanicista”. (YONTEF, 1998, p. 277).
O processo se moveu de um extremo para o seu oposto antes de encontrar o caminho do meio e a Gestalt-terapia, por não fazer diagnóstico, tornou-se alvo freqüente de desrespeito, polêmicas e críticas.
O diagnóstico é uma questão delicada para a Gestalt-terapia, se a base utilizada estiver focada na redução do humano, isto é, quando não se leva em conta a singularidade de cada indivíduo. DELISLE (1999) ressalta a necessidade de levar em consideração que a perspectiva do diagnóstico possibilita o crescimento para os psicoterapeutas e clientes.
Para MELNICK & NEVIS (1992), uma das grandes diferenças entre o modo da Gestalt-terapia diagnosticar e outras formas é o conceito de causalidade. Os gestalt-terapeutas têm consciência que o número de influências que existem em qualquer sistema é tão vasto que é impossível e improvável uma descrição completa sobre as causas.
A polêmica continua até os dias atuais e alguns estudiosos como Joseph Melnick, Sonia Nevis, Monique Augras, Joen Fagan, Jorge Ponciano Ribeiro, Lilian Frazão, Stephan Tobin, Joel Latner, Gary Yontef e Gilles Delisle já dirigem seus trabalhos considerando a importância do diagnóstico na prática psicoterapêutica.
Segundo MELNICK e NEVIS (1992), diagnóstico é uma palavra que causa complexas imagens e sentimentos na maioria dos psicoterapeutas. Para alguns é uma forma poderosa de avaliação que diz os “podes” e os “não podes” de um tratamento e para outros é um rótulo perigoso.
Diagnóstico em Gestalt-terapia, para os autores citados, é uma afirmação descritiva que articula o que está sendo percebido no momento e além do momento, sugerindo um padrão, uma predição, mesmo que mínima. Significa largar a figura e ir do que é observável ao que é difícil perceber, identificando o que não é imediatamente óbvio e as implicações de longo prazo.
Isso inclui um esquema para observar o que é necessário e como fazê-lo, “… o diagnóstico é um padrão de reconhecimento sistemático, útil para uma tarefa. Não é a colocação de pessoas em cubículos. Certamente, não é a divisão das pessoas entre boas e más, entre as com ou sem valor, capazes de crescer ou não”. (YONTEF, 1998, p. 299).
Na concepção de FRAZÃO (1999), o diagnóstico é visto como um pensamento diagnóstico processual que deve acompanhar o processo psicoterapêutico e precisa ser entendido como uma descrição e compreensão de cada cliente em sua singularidade existencial.
“Pensamento diagnóstico processual implica compreender a relação da pessoa com sua história passada e presente, pois a configuração presente está relacionada a como a pessoa viveu suas experiências e como elas a afetaram e ainda a afetam”. (FRAZÃO, 1999, p. 06).
Essa autora registra a necessidade de se considerar o diagnóstico diferencial e envolver os aspectos não saudáveis e os saudáveis do paciente no pensamento diagnóstico processual.
Segundo FAGAN (1977), “Quando o terapeuta inicia o contato com o paciente que solicita ajuda, ele tem à sua disposição um corpo de teoria que é preponderantemente cognitivo em sua natureza, um fundo de experiências passadas e um certo número de tomadas de consciência e reações pessoais derivadas da interação em curso…” (FAGAN, 1977, p. 124).
A medida em que o terapeuta vai ampliando sua compreensão de como o cliente interage com os vários acontecimentos e sistemas em sua vida, percebe que estes resultaram num estilo de vida e, geralmente, servem de apoio a um dado padrão de sintomas.
Essa autora refere-se a diagnóstico utilizando o termo padronização, para ela a ênfase da padronização na Gestalt-terapia incide sobre o processo de interação. Quanto mais o terapeuta puder especificar como o cliente interage, mais eficaz poderá ser na produção de uma mudança, pois os sistemas são intercomunicantes e uma mudança num sistema pode produzir mudanças em alguns ou muitos outros sistemas.
Grande parte da padronização em Gestalt-terapia é efetuada no próprio processo terapêutico, o gestalt-terapeuta está interessado no ponto de contato entre os vários sistemas acessíveis à sua observação (interação, tom de voz, postura corporal, etc.) e especificamente ao modo como o cliente percebe ou reage aos acontecimentos internos e externos, objetivando que este possa interatuar mais eficientemente em todos os aspectos da vida.
O que parece estar evidenciado é que de alguma forma todos os autores citados confirmam a importância de se fazer diagnóstico e colocam as razões de sua necessidade. Ao mesmo tempo existem forças que solicitam dos psicoterapeutas o diagnóstico de seus clientes, essas são formadas por grupos como: instituições, planos de saúde e organizações de saúde que pressionam para que os psicólogos lidem com o dilema do diagnóstico.
Além das influências institucionais existem razões clínicas que justificam a necessidade do diagnóstico. Na visão de YONTEF (1998) “… o diagnóstico ajuda a terapia humanística. Enquanto não consigo esclarecer as questões diagnósticas de um paciente, minha compreensão dele e de sua auto-experiência ficam reduzidas; portanto, a eficácia de minha terapia é severamente reduzida”. (YONTEF, 1998, p. 272).
Outra razão, segundo MELNICK & NEVIS (1992), é que um diagnóstico fornece um mapa e descreve as possibilidades de como a pessoa pode se desenvolver. O gestalt-terapeuta parte de uma estrutura, que serve como uma bússola para ajudar a organizar as informações e prover sinais para uma direção e navegação pelo vasto campo dos dados.
O processo diagnóstico permite ao gestalt-terapeuta controlar a ansiedade e permanecer calmo enquanto aguarda o emergir de uma figura, deixando-o fundamentado. Além disso, se mostra econômico e eficiente, pois o profissional pode fazer previsões.
O gestalt-terapeuta tem como orientação geral estar próximo à experiência imediata do cliente, porém precisa estar fundamentado em uma perspectiva que inclui o passado e o futuro, a fim de formar uma figura estável e ter um senso de continuidade.
No processo terapêutico o foco está no presente, mas a experiência passada tem sua importância a partir da forma como afeta o indivíduo no aqui e agora, surgindo como situações inacabadas e o futuro se apresenta quando o cliente expressa seu planejamento e expectativas no aqui e agora.
Segundo MILLER, (citado por MELNICK & NEVIS, 1992, p. 60), momentos, não importa quão poderosos, devem ser ligados uns com os outros a fim de formar uma figura estável.
A importância do diagnóstico se confirma por trazer mais informações e propiciar uma descrição e compreensão mais abrangente do sofrimento do cliente, proporcionando um sentido de continuidade e facilitando a compreensão da sua experiência.
A Gestalt-terapia se mostra extremamente eficiente no que diz respeito a resolver situações inacabadas, utilizando-se de alguns recursos e técnicas. Para DELISLE (1999), embora a experiência do cliente possa parecer poderosa, ela não dura para sempre, pois diante de novas dificuldades, o cliente volta ao sofrimento anterior.
Esse autor ressalta ainda que através do diagnóstico o psicoterapeuta percebe onde existem defesas do cliente, atrás das quais podem existir vulnerabilidades. Se essas defesas forem destruídas, e alguns mecanismos da Gestalt-terapia podem fazer isso, pode-se alcançar uma área que está fragmentada e corre-se o risco de colocar em perigo o equilíbrio do cliente.
A fim de enriquecer a forma de se fazer diagnóstico em Gestalt-terapia DELISLE (1999), importou conhecimentos do DSM-IV e observou que não foi necessário abandonar os conceitos da abordagem, pois o diagnóstico realizado através desse manual é descritivo, ou seja, não considera a etiologia, o que vai de encontro à Fenomenologia.
Diagnosticar é apenas uma parte da questão, defende DELISLE (1999), pois ao diagnosticar sabe-se a respeito da doença, mas pouco se conhece sobre o cliente. É necessário entender os ciclos repetitivos e persistentes de sofrimento que ele está enfrentando.
O diagnóstico é uma ferramenta de grande valor para o terapeuta, pois, segundo YONTEF (1998), possibilita o reconhecimento de padrões, discriminação e articulação na compreensão das diferentes realidades e particularidades de cada cliente, como também alerta o terapeuta previamente sobre precauções a serem tomadas.
Para CLARKSON (1989), rotular pessoas a um diagnóstico pode destituir o indivíduo de sua maneira única, porém isso não invalida o compromisso que o psicoterapeuta deve ter em reconhecer padrões auto-destrutivos e repetitivos do comportamento, o que solicita uma atenção permanente e revisão sistemática.
O diagnóstico em Gestalt-terapia é colhido essencialmente do momento e assim provê a chave para intervenção, processo interpessoal e mudança. Considera o processo do cliente evitando uma rotulação permanente baseada em características fixas. A avaliação no aqui e agora se torna mais otimista, pois oferece suporte para a mudança do indivíduo, a qual poderia ser restringida por um diagnóstico mais tradicional.
É importante perceber que a teoria da Gestalt-terapia envolve o psicoterapeuta no processo de avaliação incluindo-o como parte do diagnóstico. O psicoterapeuta influencia o que é visto evocando reações em si mesmo, o que o ajuda a criar uma única experiência. Segundo MELNICK & NEVIS (1992), uma avaliação que não leve em conta o terapeuta e o meio, que avalie o indivíduo isoladamente, é considerada limitada e incompleta.
Nessa abordagem a preferência está na utilização de verbos ao invés de substantivos, pois a palavra em uma “ação” pode potencializar a mudança no comportamento. Ou seja, o diagnóstico deixa de ser só uma descrição do momento, potencializando a ação em diversas possibilidades no campo.
O indivíduo é visto movendo-se através das experiências, num continuum, com começo, meio e fim. Em função da complexidade desse fenômeno, o cliente pode ficar preso em diferentes pontos ao longo de sua experiência. O valor do diagnóstico é auxiliar o terapeuta a descobrir o ponto de dificuldade do cliente e intervir no nível correto com técnicas apropriadas.
Se os gestalt-terapeutas não percebem que a leitura do momento presente faz parte de um diagnóstico, se arriscam a não reconhecer que se faz diagnóstico na Gestalt-terapia.
Os gestalt-terapeutas para YONTEF (1998), categorizam, avaliam e diagnosticam, pois: “Diagnosticar pode ser um processo de prestar atenção, respeitosamente, a quem a pessoa é, tanto como um indivíduo único como no que diz respeito às características compartilhadas com outros indivíduos.
Categorização, avaliação e diagnóstico são partes indispensáveis do processo de avaliação e todo terapeuta competente o faz”. (YONTEF, 1998, p. 279).
Isso significa que num processo diagnóstico inicialmente o psicoterapeuta identifica padrões gerais e a partir deles discrimina a singularidade do cliente. Esse olhar estende-se ao problema central do cliente, aos seus principais recursos, a trajetória provável do tratamento e aos sinais de perigo. Na verdade a opção é do profissional, cabe a ele se posicionar no sentido de fazer o diagnóstico de maneira superficial sem considerar o que foi aprendido pela profissão ou ponderadamente, tendo em mente a mais recente evidência trazida pela pesquisa e com awareness completa. Além da formação cabe ressaltar que o psicoterapeuta precisa de terapia, disciplina e humildade.
“Intuição é um instrumento importante no trabalho psicoterapêutico, mas, sem dúvida, insuficiente”. (FRAZÃO, 1999, p. 02). Isso é verdade tanto para a Gestalt-terapia como para qualquer outra terapia.
Além da intuição, as discriminações diagnósticas baseiam-se em ferramentas como: observação, resposta emocional do terapeuta, redução fenomenológica, exploração dialógica, que esclarece como o paciente age, sente e percebe a situação atual, embasando as decisões terapêuticas e o ritmo do processo. Para FRAZÃO (1999), é importante que o terapeuta esteja disponível para entrar em contato com o que possa emergir na relação, atento ao que o impressiona, ao que o cliente omite, quais as associações espontâneas que ele relata, se existem repetições no seu funcionamento. Esses elementos funcionam como sinalizações de possíveis relações figura e fundo e sugerem hipóteses diagnósticas.
Para o diagnóstico é importante considerar de que maneira o cliente mantém o seu processo de awareness, de que forma percorre o ciclo do contato, quais são os mecanismos de interrupção do contato que utiliza e qual o seu suporte disponível, considerando seu funcionamento. Além disso, o psicoterapeuta deve ter o cuidado de ampliar sua visão, considerando o todo e não se limitar à perspectiva do cliente, o que implica verificar o sistema familiar, os fatores culturais e biológicos e as relações pessoais e profissionais.
… podemos observar o funcionamento de uma pessoa e descrevê-lo em termos que deixam evidente se existe claridade de awareness, contato, fronteiras, e assim por diante. Isto deixa bastante espaço para alguns indivíduos que são desviantes em ‘culturas doentes’ serem sãos, e para pessoas conformistas, mesmo em culturas saudáveis, serem vistas como não-saudáveis. (YONTEF, 1998, p. 290).
O diagnóstico é construído a partir do contato entre terapeuta e cliente, e a compreensão do funcionamento do cliente vai sendo configurada por ambos. Desse encontro deverá resultar uma figura nítida para o psicoterapeuta, que buscará identificá-la de acordo com o padrão funcional do cliente, avaliando se poderá intervir e de que forma.
Essa figura nítida não necessariamente reflete a busca de uma patologia. “A Gestalt-terapia é uma abordagem existencial, o que significa que não nos ocupamos somente em lidar com os sintomas ou estrutura de caráter, mas com a existência total da pessoa”. (PERLS, 1977, p. 98).
Para CLARKSON (1989), o objetivo do processo psicoterapêutico é o restabelecimento do nível de saúde, do crescimento. A condição para um indivíduo saudável é um fluxo de experiência ininterrupto, desde a emergência até a satisfação da necessidade. Esse movimento dirige para a atualização do self, a auto-regulação.
As características individuais podem restringir a capacidade de resposta do indivíduo. Sua resposta poderá ser a mesma para situações diferentes quando não está em contato com o aqui e agora. O não contato com o momento presente impede o livre funcionamento do indivíduo.
Dessa forma, para diagnosticar, a maioria dos gestalt-terapeutas examina como ocorre o processo de formação e destruição da figura dentro do ciclo de contato, observa onde ocorrem as interrupções na fronteira de contato e quais as modalidades de contato que o cliente utiliza. Assim, podem verificar se o processo de formação e destruição de figuras (processo criativo) é interrompido ou atrapalhado em alguma fase e também como a fronteira de contato é manipulada.
Na construção do diagnóstico e na tarefa terapêutica, é necessário conectar essas figuras a gestalten mais amplas. “O processo diagnóstico é a busca de significado. Na teoria da Gestalt-terapia, significado é a relação entre figura e fundo”. (YONTEF, 1998, p. 283).
A partir da revisão de literatura realizada em busca das contribuições que o diagnóstico psicológico pode oferecer ao processo psicoterapêutico na abordagem gestáltica, não foi possível localizar autores que discordassem da necessidade e importância de fazer diagnóstico.
Pode-se perceber que alguns profissionais utilizam somente as ferramentas disponíveis na Gestalt-terapia para diagnosticar, enquanto outros incluem conceitos de abordagens diferentes objetivando enriquecer a prática clínica e propiciar a troca com profissionais de orientações teóricas diferentes. Não importa a nomenclatura utilizada: diagnóstico, diagnóstico descritivo, padronização, diagnóstico processual ou outros, o que observa-se é que nessa abordagem se faz diagnóstico e parece não haver dúvidas quanto à sua necessidade.
Compreender como o indivíduo se desenvolve, de que maneira o seu funcionamento efetiva sua existência a partir de uma realidade fenomenológica é diagnosticar e parece ser condição necessária para o profissional auxiliar seu cliente no seu processo de conscientização, aprendizagem e mudança, baseado em seus próprios significados.
Muitas formas e modelos de diagnóstico são utilizados por gestalt-terapeutas na prática clínica e essa realidade torna difícil apontar para um modelo como sendo o ideal. Muito embora, a forma se mostre variada, aparece com destaque um ponto comum a todos os autores estudados: a preocupação em preservar a singularidade de cada cliente, não os limitando a conceitos pré-estabelecidos.
Um processo de avaliação sério e eficaz não dispensa o diagnóstico, porém esse não pode ser visto como um fim em si mesmo, ele está a serviço do processo psicoterapêutico, exigindo um reposicionamento constante do profissional. O processo é dinâmico, configurando-se e reconfigurando-se constantemente. O campo é um mosaico em movimento, um universo inesgotável de possibilidades.
Eximir-se de diagnosticar é uma opção do profissional, mas cabe refletir que toda experiência pressupõe a existência de polaridades. Ao evitar-se a ansiedade gerada ao diagnosticar, evita-se também a ampliação e a qualidade de compreensão do cliente. Em Gestalt-terapia, lidar com paradoxos é uma realidade.
A forma de utilizar o diagnóstico como ferramenta é uma escolha de cada profissional e está relacionada a sua maneira particular e pessoal de ser. Não permitir ao profissional a liberdade responsável e consciente dessa escolha seria ignorar a base da Gestalt-terapia, roubando-lhe a possibilidade de alcançar o máximo numa relação psicoterapêutica.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CLARKSON, Petruska. Gestalt Counselling in Action. London: Sage, 1989.
DELISLE, Gilles. Personality Desorders. Montréal – Québec Canadá: Sig Press, 1999.
DSM-IV – Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. 4a. Ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.
FAGAN, Joen. Gestalt-Terapia: Teorias, Técnicas e Aplicações. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977.
FRAZÃO, Lilian Meyer. A Compreensão do funcionamento saudável e não saudável a serviço do pensamento diagnóstico processual em Gestalt-terapia. 1999. [Online]. Configuração. Disponível [10 nov. 2000].
MELNICK, Joseph; NEVIS, Sonia March. Diagnosis: The Struggle for a Meaningful Paradigm. In: NEVIS, Edwin C. Gestalt Therapy: Perspectives and Applications. Gardner Press: New York, 1992.
PERLS, Frederick Salomon. Gestalt-terapia. São Paulo: Summus, 1997.
_____ Gestalt-terapia explicada. São Paulo: Summus, 1977.
_____ Yo, Hambre y Agresión. México: Fondo de Cultura Económica, 1982.
YONTEF, Gary M. Processo, Diálogo e Awareness. São Paulo: Summus, 1998.
Artigo publicado pela Revista de Gestalt – Número 10 – 2001